Em 1973, onze pessoas partiram em uma jornada transatlântica de 101 dias, como parte de um experimento sobre violência, agressão e atração sexual
(FASAD)
Dalia Ventura
BBC Mundo
Tudo começou com um sequestro em novembro de 1972.
O antropólogo espanhol-mexicano Santiago Genovés estava voando para a Cidade do México, onde vivia desde os 15 anos, quando chegou ao país como refugiado da Guerra Civil Espanhola.
Ele havia embarcado na cidade de Monterrey, após participar de uma conferência sobre a história da violência, quando de repente um grupo assumiu o controle da aeronave, exigindo a libertação de alguns companheiros.
"Era bom demais para ser verdade... Imagina a ironia. Eu, um cientista que passou a carreira toda estudando comportamento violento, acabar dentro de um avião sequestrado."
"Toda a minha vida eu tentei saber por que as pessoas brigam e entender o que realmente acontece na nossa mente", escreveu depois Genovés, uma das grandes referências mundiais em antropologia física, doutor em antropologia pela Universidade de Cambridge, no Reino Unido, que dava aulas na Universidade Autônoma do México.
O sequestro da aeronave inspirou o pesquisador a criar uma situação semelhante, que serviria como laboratório para estudar o comportamento humano.
E a experiência que havia tido alguns anos antes com o renomado aventureiro e etnólogo norueguês Thor Heyerdahl deu a ele a ideia para colocar seu plano em prática.
Embora o Ra I não tenha chegado ao seu destino, Heyerdahl demonstrou com o Ra II que era possível viajar do Mediterrâneo e cruzar o Oceano Atlântico muito antes de Colombo
Genovés havia colaborado com Heyerdahl na construção de embarcações de papiro Ra I e Ra II, no estilo dos barcos do antigo Egito, e fez parte da tripulação multinacional que cruzou o Atlântico para mostrar que os africanos poderiam ter chegado à América antes de Cristóvão Colombo.
Durante essas viagens, ele aprendeu o que todo marinheiro sabe: não há laboratório melhor para estudar o comportamento humano do que um grupo que flutua em alto mar.
Casa na água
Com o mar como meio isolante perfeito, o antropólogo se encarregou de preparar seu experimento, elaborando estratégias para provocar conflitos e ferramentas para examiná-los.
"Graças a testes com animais em laboratório sabemos que a agressão pode ser desencadeada colocando diferentes tipos de ratos em um espaço limitado. Quero descobrir se acontece o mesmo com os seres humanos."
O antropólogo mandou construir então um barco de 12 x 7 metros com uma pequena vela. A cabine media 4 x 3,7 metros, com "espaço apenas para o corpo de cada um, deitado. Não dá para ficar em pé", escreveu na Revista de la Universidad de México, em 1974.
Os participantes dormiam assim na cabine, conforme mostram 45 anos depois, três dos seis voluntários do experimento reunidos pelo diretor Marcus Lindeen para o documentário 'A Balsa'
E tanto o chuveiro quanto o vaso sanitário ficavam ao ar livre, à vista dos colegas de tripulação.
Ele chamou a balsa de Acali, que na língua náuatle significa "casa na água".
Nela, embarcariam 10 pessoas para fazer uma viagem que duraria 101 dias, sem motor, eletricidade, tampouco "barcos a acompanhando, ou possibilidade de recuar".
'Dez bravos desconhecidos'
Para encontrar voluntários, Genovés publicou um anúncio em vários jornais internacionais - centenas de pessoas responderam.
'Líder de expedição busca voluntários para cruzar o Atlântico em uma balsa, duração de 3 meses, homens e mulheres, de preferência casados, mas sem participação dos cônjuges, idade 25-40', dizia o anúncio publicado no jornal The Times em 6/4/1973
Ele escolheu quatro homens e seis mulheres - sendo apenas quatro deles solteiros e quase todos com filhos, de diferentes nacionalidades, religiões e contextos sociais, selecionados "para criar tensões no grupo".
Entre eles, estava a capitã: a sueca Maria Björnstam, solteira, de 30 anos, a quem Genovés convidou para ser "a primeira mulher do mundo a ser nomeada capitão de uma embarcação".
Não foi a única mulher a quem ele designou uma função dominante.
Genovés decidiu dar papéis importantes a todas elas, deixando para os homens tarefas insignificantes.
"Me pergunto se dar poder às mulheres levará a menos violência. Ou se haverá mais", escreveu.
Em 13 de maio de 1973, a balsa Acali saiu de Las Palmas, nas Ilhas Canárias, sendo lançada em alto mar como uma ilha flutuando preguiçosamente em direção ao seu destino: a ilha mexicana de Cozumel.
Os 11 participantes a bordo da balsa, com a capitã no meio
Sexo dentro e fora
Junto com Acali também zarpou a imaginação da opinião pública, instigada pela imprensa.
Apesar de não contar com as câmeras que anos depois mostrariam todos os detalhes de situações semelhantes em reality shows, os meios de comunicação aproveitaram para criar histórias mirabolantes baseadas nos poucos minutos de contato de rádio com a embarcação.
Os jornais estampavam manchetes como "As orgias na jangada do amor" ou "O segredo da balsa do amor" - que falava sobre um suposto código secreto de rádio, para o caso de haver alguma emergência na "balsa da paixão". Foram publicados artigos dedicados, inclusive, ao fato de a capitã usar biquíni, o que fez com que o projeto de Genovés começasse a ser conhecido como "a balsa do sexo".
E, embora a realidade a bordo não fosse como os jornais pintavam, as relações sexuais estavam muito presentes no menu de experimentos preparado pelo antropólogo.
Entre outras coisas, o próprio estreitamento da jangada dificultava logisticamente o sexo... embora essas dificuldades tenham sido superadas por vários casais, mas não da forma como os tabloides imaginavam
"Estudos científicos com macacos mostraram que existe uma conexão entre violência e sexualidade, onde a maioria dos conflitos entre machos é consequência da disponibilidade de fêmeas que estão ovulando."
"Para verificar se acontece o mesmo entre os seres humanos, selecionei participantes sexualmente atraentes."
"E como o sexo está ligado à culpa e à vergonha, coloquei entre eles Bernardo, um padre católico de Angola, para ver o que acontece. "
Na embarcação, embora vários membros da tripulação tenham tido relações sexuais, esse aspecto do comportamento humano não gerou tensões ou hostilidades dignas de nota - a não ser que levasse em conta o desconforto sentido pelos participantes quando descobriram, ao fim da viagem, a narrativa lasciva dos tabloides sobre a expedição.
O observador observado
No entanto, o sexo era apenas uma das facetas de um experimento cujos objetivos eram considerados mais elevados - como o próprio Genovés confirmou ao ser questionado pela capitã Maria perante o grupo:
"Eu disse a eles que queria descobrir como criar a paz na Terra."
Para alcançar este feito, era essencial entender a agressividade dos seres humanos.
No entanto, com o passar dos dias, o único indício de comportamento violento que se manifestou naquele laboratório flutuante foi diante de um tubarão - "para minha grande surpresa, não houve ciúme sexual, tampouco conflitos entre os participantes".
'Como não era permitido ler livros, o único entretenimento era cantar ou contar histórias sobre suas vidas em terra'... mas nada disso desencadeou atos violentos
Após 51 dias de convivência, Genovés escreveu frustrado:
"Ninguém parece lembrar que estamos aqui tentando encontrar uma resposta para a questão mais importante do nosso tempo: Podemos viver sem guerras?"
Ele levou um tempo até perceber que seus métodos estavam efetivamente surtindo efeito: causar irritação, provocar animosidade e despertar agressividade. Mas, surpreendentemente, não da maneira que havia imaginado.
"Me dei conta que o único que havia mostrado qualquer tipo de agressividade ou violência na balsa tinha sido eu."
E não foi só isso. Ele também foi o único alvo dos sentimentos sombrios dos outros.
'Assassinato'
Mais de quatro décadas depois, alguns membros da tripulação confirmaram que chegaram a imaginar a hipótese de "assassinato".
"Estávamos todos pensando a mesma coisa ao mesmo tempo - será que vamos fazer isso?", contou a engenheira americana Fe Seymour, no documentário A Balsa, do cineasta sueco Marcus Lindeen, que será lançado em setembro no México.
Lindeen reuniu os seis participantes do projeto Genovés que ainda estão vivos para compartilhar suas memórias, fotos e filmes em uma reconstituição do experimento.
Sobreviventes do experimento (da esquerda para a direita): Mary Gidley, Edna Reves, Fé Seymour, Eisuke Yamaki, Maria Björnstam e Servane Zanotti
Em sua ânsia de proteger o projeto, Genovés acabou se comportando como "um ditador", segundo Björnstam, ao ponto de em determinado momento assumir o comando e se declarar capitão.
"Era difícil suportar sua violência psicológica", acrescenta o japonês Eisuke Yamaki.
Os participantes imaginaram várias estratégias: desde jogá-lo "acidentalmente" ao mar até injetar drogas que causariam uma parada cardíaca - "com a mão de todos segurando a seringa".
"Me dava medo pensar que chegaria ao ponto em que faríamos isso. Fiquei assustada. Como estávamos no mar, não é como quando você está em terra: nada era normal."
"Naquele momento, percebi que tínhamos a capacidade de fazer algo terrível para sobreviver", lembra Seymourno no documentário A Balsa.
Em terra firme
Mas nada grave aconteceu.
Os problemas com Genovés foram resolvidos diplomaticamente, assim como todas as outras desavenças que haviam tido durante a viagem - diferentemente do que previa o experimento.
'Acordei no meio da noite, os outros dormiam tranquilamente à minha volta. Mas por alguma razão me senti completamente só', escreveu Genovés
Quando a balsa chegou ao México, todos que estavam a bordo - incluindo Genovés - foram mantidos isolados por uma semana e submetidos a uma série de exames com psiquiatras, psicólogos e médicos.
O antropólogo passou por momentos difíceis durante os exames e, depois, com as críticas que foram feitas ao experimento. Mas seguiu em frente com sua carreira de prestígio como antropólogo físico, com suas aventuras flutuantes (mais tarde, navegou sozinho para "conhecer a si mesmo") e sua farta produção de artigos e livros, entre várias outras coisas.
Para os voluntários, a viagem começou e terminou como uma aventura. Apesar de terem vivido alguns momentos difíceis, não havia desavenças no grupo, muito pelo contrário. Eles criaram um vínculo que se mantém até hoje.
Após pesquisar minuciosamente o caso, o autor do documentário acredita que Genovés poderia ter encontrado parte do que buscava em Acali - mas não exatamente com seus questionários e estratégias.
"Se tivesse ouvido a explicação das pessoas de por que estavam na balsa - Maria fugindo de um marido abusivo, o racismo que Fe tinha sofrido -, ele teria aprendido sobre as consequências da violência e como às vezes podemos superá-la suavizando nossas diferenças", avaliou Marcus Lindeen em entrevista ao jornal britânico The Guardian.
FONTE: BBC BRASIL
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