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Se fosse Olimpíada, Santos-Dumont seria primeiro



POR SALVADOR NOGUEIRA

Se a disputa pela primazia na invenção do avião fosse uma competição olímpica, Alberto Santos-Dumont seria o primeiro. Para isso basta checar os registros da FAI, Federação Aeronáutica Internacional — o equivalente do COI na aviação. O primeiro recorde da história dos aviões foi marcado pelo brasileiro em 12 de novembro de 1906, quando seu avião 14-bis partiu do plano, decolou, voou por 220 metros e tornou a pousar.

A discussão voltou à tona com a bonita homenagem ao inventor brasileiro na abertura dos Jogos Olímpicos do Rio e causou reações internacionais fortes. Com efeito, a história da tecnologia não é uma competição olímpica. E naturalmente é bem mais complicada do que simplesmente ver quem estabeleceu o primeiro recorde “oficial”. Basta para constatar isso lembrar que a FAI foi fundada em 1905, e o primeiro voo dos irmãos Wright em um aeroplano motorizado se deu dois anos antes, em 1903. Não haveria, pois, como uma organização fundada posteriormente registrar o feito da dupla americana.

Infelizmente, toda essa confusão só existe porque a maioria das pessoas prefere tratar a invenção do avião como uma competição, quando o certo seria enxergar a cooperação na concepção desta máquina que mudou o mundo.

A exemplo de muitas das invenções do século 20, o avião foi uma criação coletiva. Ninguém poderia ser alçado à condição de criador “solo”, pelo simples fato de que foi o intercâmbio de técnicas e informações que o tornou possível. Em 1900, quando Wilbur Wright iniciou suas experiências com o tema, ele escreveu, em carta a Octave Chanute, então um engenheiro mais experiente nesses assuntos: “Não faço segredo dos meus planos pelo fato de que acredito que nenhum ganho financeiro irá para o inventor da primeira máquina voadora, e que apenas os que estão querendo dar e receber sugestões podem esperar ligar seus nomes à honra de sua descoberta. O problema é grande demais para um homem sozinho e sem ajuda resolver em segredo.”

É irônico que, alguns anos depois de escrever isso, ele e seu irmão Orville mudariam radicalmente de opinião, a partir de 1903. Nos três anos anteriores, os humildes fabricantes de bicicletas de Dayton, Ohio, realizaram diversos experimentos com pipas e planadores, com o objetivo de permitir dar controle completo a um avião. De nada serviria ser capaz de voar se não fosse possível controlar com precisão a direção do voo, como o fazem os pássaros. Com metodologia invejável, gastaram seu tempo desenvolvendo uma solução para isso, e o que encontraram foi a torção de asas — ao elevar a ponta das asas de um lado e rebaixar de outro, em pleno voo, seria possível dar controle de rolamento ao avião no ar. Ele poderia se inclinar, como as aves fazem ao realizar uma curva.

Quando se deram conta de que funcionava, decidiram manter discrição nos experimentos, pela convicção de que haviam atingido o sucesso que até alguns anos atrás consideravam impossível sem ajuda de outros inventores. Fizeram um pedido de patente sobre o controle de rolamento e passaram a conduzir seus testes de forma isolada, na esperança de vender sua máquina voadora a algum governo — de preferência, mas não necessariamente, o dos Estados Unidos.

Já Santos-Dumont, àquela altura, era um pop star. Radicado na França, mas sem jamais abdicar de sua origem brasileira (ele escrevia seu sobrenome com hífen justamente para que ninguém descartasse o “Santos” e o tomasse por um francês), havia se tornado famosíssimo com seus balões dirigíveis, sobretudo depois de conquistar um prêmio pela façanha de contornar a Torre Eiffel, em 1901.

A fama do inventor brasileiro era tanta que, quando Orville e Wilbur realizaram seu primeiro voo bem-sucedido — partindo de um plano levemente inclinado, sem trem de pouso, e contra um vento contrário fortíssimo na isolada praia de Kitty Hawk, na Carolina do Norte –, e comunicaram o sucesso, em dezembro de 1903, o jornal de sua cidade local, o Dayton Daily News, estampou na manchete: “Rapazes de Dayton emulam o grande Santos-Dumont”.


Primeiro voo motorizado dos irmãos Wright, em 17 de dezembro de 1903 (Crédito: LOC)

Ao mesmo tempo, na Europa, chegavam os primeiros rumores de que os irmãos americanos haviam solucionado o problema do voo do mais pesado que o ar. Apesar disso, havia grande ceticismo. Os Wrights mantinham segredo sobre seu invento e declinavam todo e qualquer convite para ir à Europa demonstrá-lo, sem que antes houvesse uma garantia de compra. Claramente, e a despeito do que Wilbur declarara anos atrás, eles haviam decidido ganhar a vida com a aviação.

Hoje sabemos, por toda a documentação disponível, que o voo de 1903 aconteceu, assim como os que vieram nos dois anos seguintes. Aperfeiçoando palmo a palmo sua máquina, os Wrights atingiram a proficiência. Para permitir decolagens em locais sem vento, eles desenvolveram uma espécie de catapulta. E, uma vez no ar, seu aeroplano, o Flyer, permitia controle total ao piloto, embora fosse inerentemente instável. O motor, embora fraco pelos padrões europeus, viabilizava a manutenção da máquina no ar. Em 1905, em seu maior voo, os Wrights percorreram 39 km, feitos em 39 minutos, e o avião só pousou depois que a gasolina acabou. Ninguém voava como eles naquela época.

O Flyer III, em 1905, já fazia voos de vários quilômetros (Crédito: LOC)

Os rumores desses sucessos espetaculares começaram a se tornar cada vez mais fortes na Europa, e Santos-Dumont, como grande pioneiro do ar que já era, decidiu que era o caso de tomar parte nas pesquisas sobre aeroplanos. E aí vislumbramos o gênio do brasileiro: em menos de dois anos, ele foi do nada a um avião capaz de decolar e voar — o 14-bis — e estabeleceu o primeiro recorde oficial da aviação.

Dos dois lados do Atlântico, os olhares eram de desconfiança. Na Europa, Santos-Dumont foi festejado como o líder de um movimento que rapidamente impulsionava a aviação. Nos Estados Unidos, os Wrights ainda não estavam preocupados em ser sobrepujados, mas já sentiam a proverbial água batendo na bunda.

A rigor, a coisa estava no seguinte pé: Santos-Dumont tinha o primeiro avião “auto-suficiente” — capaz de decolar, voar e pousar por seus próprios meios, embora não fosse controlável com alguma precisão no ar. Os Wrights tinham o primeiro avião “prático” — embora precisasse de uma catapulta para decolar, podia voar por tanto tempo quando o combustível permitisse, e com controle absoluto no ar.

Outros aviadores europeus passaram a decolar depois de Santos-Dumont e fazer evoluir a aviação por lá. Ficou claro que seria preciso dar controle de rolamento e uma solução alternativa à dos Wrights foi encontrada — pequenas asinhas auxiliares móveis dos dois lados poderiam fazer o mesmo papel da torção de asa, sem precisar realmente torcer a asa. Eles ficaram conhecidos como ailerons, e Santos-Dumont chegou a tentar implementar uma versão rudimentar deles no 14-bis. Mas estava claro que o design estava aquém do desafio.


O 14-bis em voo, em 1906 (Crédito: Domínio Público)

Com sua incrível criatividade e intuição, em 1907, Santos-Dumont partiu para um projeto completamente diferente — e esse sim se tornaria o precursor mais direto do avião moderno. Chamado de Demoiselle, ele foi o primeiro avião a colocar os lemes atrás, onde eles estão até hoje na imensa maioria dos aeroplanos. Note que tanto os Flyers dos Wrights quanto o 14-bis tinham seus lemes à frente, o que faz parecer que os aviões andavam “de costas”, do nosso ponto de vista moderno. O Demoiselle foi o primeiro avião a “andar para a frente”.

Sem o sucesso comercial que ambicionavam, os Wrights finalmente concordaram em realizar exibições na Europa em 1908, e aí foram abraçados como os grandes pioneiros da aviação. Sua máquina fazia circuitos em forma de 8 no ar com uma facilidade sem igual. Nenhuma máquina europeia até então era capaz daquilo.

Eventualmente, contudo, os irmãos americanos também seriam influenciados por seus colegas da Europa. A partir de 1910, seu Flyer Model B teria os lemes atrás, rodas no trem de pouso e decolaria por seus próprios meios, sem catapulta. Foi o primeiro avião dos Wrights a atingir alguma medida de sucesso comercial. E, claro, eventualmente a torção de asas também seria abandonada em favor dos mais práticos e efetivos ailerons.

Bem, e qual é o ponto dessa história toda? Essencialmente mostrar que a aviação foi um “movimento”, do qual os Wrights e Santos-Dumont foram grandes expoentes. Seria injusto atribuir a qualquer deles a glória suprema, relegando os demais à condição de farsantes. E, embora essa seja a verdade histórica, existe uma tendência mundial a abraçar um dos lados e relegar o outro a uma nota de rodapé.

Há uma razão histórica para isso também. Depois que a aviação atingiu um ponto em que todo mundo conseguia voar, os Wrights começaram a processar outros inventores por violação de sua patente. Na Europa, ninguém deu bola. Mas, nos Estados Unidos, a conversa foi outra. Uma guerra judicial se desenrolou e o cerne da questão era o valor da inovação dos Wrights: foram ou não foram eles os primeiros a voar?

A disputa foi ferrenha até a entrada dos americanos na Primeira Guerra Mundial, quando a necessidade de desenvolver a aviação nos Estados Unidos suspendeu todas as disputas judiciais. Mas os Wrights sempre mantiveram a preocupação de ter reconhecida sua primazia, mesmo depois que ela perdeu o valor comercial. Um dos maiores críticos da primazia dos Wrights era a Instituição Smithsonian. Um de seus diretores, Samuel Langley, havia desenvolvido um avião antes dos irmãos de Dayton, que, no entanto, jamais fez um voo bem-sucedido. Durante a guerra de patentes, o aviador Glenn Curtiss criou uma réplica do Aerodrome de Langley, mas com modificações. E aí ele voou. O Smithsonian descreveu o Aerodrome como a primeira máquina “capaz de voar”, o que deixou os Wrights furiosos.

Então, eles só cederam o seu primeiro Flyer ao Museu do Ar e do Espaço, controlado pela instituição, com a condição de que ele fosse descrito como a primeira máquina mais pesada que o ar a voar. Era condição contratual que jamais o Smithsonian se referisse a outra máquina como a pioneira do voo do mais pesado que o ar. Isso, naturalmente, enviesou muitos historiadores ao longo do tempo, que preferem não reabrir essa questão — mas o incômodo não é com Santos-Dumont, pasme, e sim com Samuel Langley.

Essa é uma história tão rica e fascinante que escrevi um romance histórico recontando-a em detalhes, chamado “Conexão Wright-Santos-Dumont”, e nem precisei inventar um personagem sequer. Falta só virar série agora. Alô, Netflix, vamos nessa?

FONTE: http://mensageirosideral.blogfolha.uol.com.br/

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