É DO BRASIL | MARCELLE SOARES-SANTOS ESTEVE ENTRE OS 16 LÍDERES DE PESQUISA QUE APRESENTARAM RESULTADOS DURANTE CONFERÊNCIA SOBRE QUILONOVA (FOTO: BRANDEIS UNIVERSITY/DIVULGAÇÃO)
A astrofísica Marcelle Soares-Santos, uma das cientistas brasileiras mais relevantes do momento, fala sobre o futuro da cosmologia e a crise da ciência
Após tornar-se doutora pelo IAG-USP, a astrofísica capixaba Marcelle Soares-Santos, 36, foi de mala e cuia para os EUA, em 2010. Partiu para um estágio de pós-doutorado no Fermilab, um dos mais renomados centros de pesquisa em física de partículas — e se deu tão bem que não voltou mais. Nem imaginava, porém, que poucos anos depois estaria no epicentro de um dos estudos mais emblemáticos dos últimos tempos: a observação conjunta tanto em ondas gravitacionais quanto no espectro eletromagnético de uma titânica explosão estelar.
Com coordenação do LIGO, o Observatório de Ondas Gravitacionais por Interferômetro Laser, cerca de 70 telescópios em solo e no espaço colaboraram para monitorar, em 17 de agosto de 2017, todos os desdobramentos da colisão entre duas estrelas de nêutrons — um dos objetos mais compactos e densos do Universo. Os astrônomos chamam o fenômeno de quilonova. Santos esteve envolvida até o pescoço na empreitada.
Ela coordena uma equipe no Fermilab que busca a contrapartida eletromagnética (emissões de luz) de fenômenos extremos que chacoalham o espaço-tempo e propagam ondas gravitacionais. São membros do DES, o Dark Energy Survey (Levantamento da Energia Escura), projeto que usa uma câmera de 570 megapixels (a Dark Energy Cam, ou DECam) para escrutinar 300 milhões de galáxias nos céus do Deserto do Atacama.
Nenhum outro cientista brasileiro participou da importante coletiva de imprensa que anunciou ao mundo, em 16 de outubro de 2017, os primeiros resultados sobre o evento GW170817 — só Santos. Em entrevista à GALILEU, a astrofísica explica como seu maior interesse, a cosmologia, área que examina as origens, evolução e estrutura do Universo, deve se beneficiar dos estudos que combinam as ondas gravitacionais e eletromagnéticas. Fala também sobre o momento especial de sua carreira e sobre o futuro da pesquisa no Brasil diante de cortes de verba.
Como foi ser a única brasileira a falar no anúncio da quilonova, na sede da National Science Foundation?
Foi algo que, para dizer a verdade, eu não esperava. Quando a gente começa a trabalhar em um projeto assim, nossa expectativa de sucesso é a publicação, e quem sabe inspirar outros trabalhos. Mas essa presença no palco, para milhares de pessoas, foi uma coisa completamente nova para mim. E acho que não vai se repetir não (risos). Foi um momento muito especial, eu estava bem nervosa. Tive de ensaiar bastante: foram só dois minutos de fala, mas pelo menos quatro dias preparando o que seria dito. Depois, para ter certeza de que tudo caberia dentro do intervalo de tempo, demorou quase uma semana. E tudo isso enquanto nos preparávamos para submeter os artigos.
Seis meses após a primeira observação tanto em ondas gravitacionais quanto em luz visível, Como andam os estudos com os dados daquele evento?
A repercussão é grande em várias áreas. Na cosmologia, meu maior interesse, um dos nossos papers investiga se seria possível melhorar a medida do parâmetro de Hubble, que é a taxa de expansão do Universo. Consideramos os dados sobre o jato de partículas emitido após a colisão. Essas medidas foram publicadas no dia do anúncio. Depois, tentamos melhorar usando mais informações publicadas, e a resposta é que sim, há possibilidade de melhora, mas ela ainda não foi significativa. Até agora, descobrimos algo novo que pode ser uma ferramenta para a cosmologia. A próxima etapa é usar essa ferramenta para fazer medidas de alta precisão. É isso que estamos preparando agora para a próxima etapa de observações do LIGO, que se inicia no segundo semestre deste ano, por volta de outubro. Serão de oito a nove meses de preparação. A primeira rodada de observação terminou no final de agosto, poucos dias depois do evento. Durou, ao todo, seis meses.
Quais são as expectativas para 2018?
Neste ano, vamos ter no mínimo cinco ou seis eventos nunca antes vistos que envolvem estrelas de nêutrons. Na maioria, eles estarão mais distantes, serão mais difíceis de observar, mas mesmo assim esperamos um número razoável. Temos de amplificar por um fator de cinco todo o programa que fizemos até agora — rapidez no processamento de dados, habilidade de coordenar observações, tudo precisa ser muito mais flexível, rápido e eficiente. Uma das atividades agora, bem técnica, requer a capacidade de observar e retornar uma descoberta com tanta celeridade como fizemos com o GW170817, mas para eventos futuros, que serão ainda mais fracos e difíceis de observar. Nos meses de verão, que aqui são junho e julho, vamos fazer uma semana de observação simulada: vamos fingir que estamos no meio da temporada de observação e que encontramos um evento. A ideia é testar todo o sistema.
DECAM DESCOBRIU A FONTE LUMINOSA (QUILONOVA) DE ONDE VIERAM AS ONDAS GRAVITACIONAIS. DUAS SEMANAS DEPOIS, A NOVA “ESTRELA” JÁ HAVIA SUMIDO (FOTO: DES/FERMILAB/DIVULGAÇÃO)
Ainda olhando em retrospecto, diria que a astronomia entrou em uma nova era com essas observações?
Com certeza. Elas estão mesmo abrindo janelas para novas descobertas. Minha expectativa é de que haverá um aumento no interesse por essa área, algo que já estamos observando, por exemplo, quando pessoas vão fazer aplicação para pedidos de tempo em telescópios e até mesmo no processo de contratação dos pesquisadores. É uma área nova, interessante e em que a progressão em termos de quantidade de dados será muito rápida nos próximos anos. Se fosse algo como uma detecção hoje e a próxima daqui a três ou quatro anos, daria uma esfriada na comunidade. Mas, pelo contrário, esperamos um aumento muito significativo no número de eventos. E isso só de estrelas de nêutrons, sem falar nas detecções que envolvem os buracos negros.
Falando nesse tipo de evento, que foi o mais comum até agora para o LIGO, o que se pode esperar para este ano?
Estive em uma conferência na qual uma colega do LIGO apresentou as últimas previsões para esses eventos — o número mínimo esperado para essa próxima temporada é 50. O máximo, 800. Consegue imaginar isso, 800 eventos em um ano? Agora as observações vão durar um ano inteiro. Será um cenário em que poderemos, por exemplo, tentar descobrir se há alguma emissão eletromagnética dos buracos negros. Seria outra descoberta espetacular. Outra coisa a se detectar é um sistema misto, com um buraco negro e uma estrela de nêutron, que também é um novo tipo de evento. Todo mundo nessa comunidade está muito interessado, várias pessoas agora estão fazendo o mesmo que a gente: se preparando para lidar com um número de dados muito maior.
Como tudo isso deverá contribuir para a resolução de questões que continuam em aberto na astrofísica?
Na cosmologia, o parâmetro de Hubble é um dos vários que são relevantes. Atualmente estamos interessados é em descobrir o que causa a aceleração na expansão do Universo. Fala-se em energia escura, embora ainda nem se saiba se é, de fato, uma nova forma de energia ou não. Hoje em dia usamos vários métodos para fazer essas medições. Um deles é um tipo de estrela, as cefeidas. Elas são variáveis, mas têm um período que nos permite usá-las como um padrão. O problema é que só conseguimos ver cefeidas até uma distância bem próxima de nós, e elas também não são idênticas. Isso faz com que a incerteza no parâmetro de Hubble não desça muito facilmente, é difícil fazê-la progredir. Já esse novo método de ondas gravitacionais não terá as mesmas dependências das cefeidas, e também vai ser muito sensível.
E como será a incerteza do parâmetro de Hubble com ondas gravitacionais?
À medida que mais eventos forem se acumulando, a ideia é que a incerteza do parâmetro de Hubble, usando ondas gravitacionais, seja comparável à das cefeidas ou até menor. Atualmente, as melhores medidas alcançam 2,5% [de incerteza]. Nós achamos que é possível atingir 1% se acumularmos 30 eventos de estrelas de nêutrons. Esperamos meia dúzia só neste ano. A partir de 2019, com um aumento ainda maior de eventos anualmente, alcançaremos esse número em cerca de quatro ou cinco anos. É um tempo longo, mas na escala desse tipo de projeto não é nada — é bem razoável. Com as cefeidas, por exemplo, levaram 20 anos para chegar ao nível de incerteza de hoje.
No início de sua carreira, você estudou as ondas gravitacionais primordiais: geradas pelo próprio Big Bang, são muito difíceis de se detectar. pretende voltar ao tema no futuro?
Olha, nunca se pode dizer nunca, mas atualmente não estou pensando em retornar àquele tópico não. Estou mais voltada para atingir essa incerteza de 1% com esse tipo de ondas gravitacionais mesmo. Entretanto, sempre existe alguma possibilidade.
E se instrumentos sofisticados em breve forem capazes de detectá-las, quais serão os impactos na ciência?
Aí outras portas serão abertas. Se acontecer mesmo aquela observação, com certeza a revolução em nosso entendimento sobre o Universo vai ser enorme. Mas, nesse caso, em vez de se descobrir sobre energia escura, que está fazendo com que o Universo atual se expanda de maneira acelerada, iria se descobrir a respeito da época da inflação, um período lá no comecinho mesmo, quando o Universo estava tão denso e quente que nossa descrição da relatividade geral nem sequer era aplicável. É a única maneira que teríamos de obter informação a respeito desse regime extremo das coisas. No caso, as possibilidades seriam infinitas, mas é bem diferente do que faço atualmente. Eu me encontro no outro extremo da evolução universal — do atual para o futuro.
Você iniciou no Fermilab em 2010 em um estágio de pós-doutorado. Pode contar um pouco sobre como é o trabalho de pesquisa que desenvolve lá?
Quando comecei no Fermilab, em 2010, o DES e a câmera DECam estavam em construção. Nessa época, trabalhei bastante com a mão na massa mesmo, na parte de instrumentação. Passei até uns meses no Chile. Na fase atual, com a câmera em funcionamento, o esforço é 100% direcionado ao trabalho de usar os dados que obtemos para fazer ciência. São duas vertentes, e uma delas é a de que falei agora, com ondas gravitacionais. A outra é a que chamo de métodos mais tradicionais de estudar a energia escura — o que inclui aglomerados de galáxias. Eu desenvolvi um método para encontrar aglomerados por meio do uso de informações sobre as galáxias obtidas nas imagens.
Como funciona essa técnica?
Criei o algoritmo na época do meu doutorado. Durante anos que passei como pós-doc, uma das coisas que fiz foi trabalhar no desenvolvimento observável da massa dos aglomerados. A taxa de crescimento depende da energia escura: se conseguir medir o número de aglomerados em função da massa, consigo descobrir a quantidade de energia escura no Universo. Como não podemos colocar aglomerados na balança, temos de observar a luminosidade total ou o número total de membros. Eu trabalho nesse tópico até hoje. Agora, como professora na Universidade Brandeis, tenho uma pós-doc trabalhando comigo, na especialização em medidas de massa de aglomerados. É uma área que está progredindo em paralelo com as ondas gravitacionais.
E dá para unir as linhas de pesquisa?
O problema da energia escura é tão complexo que, no final, vamos precisar de todas as ferramentas. Ondas gravitacionais para ajudar no parâmetro de Hubble; aglomerados para entender outros parâmetros, como a quantidade de energia escura que existe no Universo. Chamamos isso de equação de estado: mede quão forte é o efeito da energia escura no espaço-tempo. Essas são minhas linhas de pesquisa. Em termos de projeto, além do atual, o DES, participo da próxima geração de telescópios, o LSST (Large Synoptic Survey Telescope), que tem forte participação brasileira. Será fantástico: é igual ao DES, só que maior, melhor e mais rápido. Mas ainda vai demorar uns anos até termos os dados. Agora, o foco mesmo é a DECam.
Quais as perspectivas para o DES nos próximos anos? O que querem aprender com 300 milhões de galáxias?
Há várias coisas muito bacanas acontecendo. A gente fez o que se chama de data release: basicamente, pegamos todos os dados obtidos até certo ponto, os compilamos e fizemos uma página na internet em que qualquer pessoa pode baixar dados, imagens, catálogos de galáxias, estrelas, todas as informações que obtivemos nos três primeiros anos de pesquisa, com uma qualidade fantástica. Ao mesmo tempo, produzimos os primeiros resultados cosmológicos não incluindo ondas gravitacionais, obviamente, pois elas ainda não estavam no menu, mas outras formas tradicionais de estudar energia escura. Agora estamos numa situação em que, pela primeira vez, os dados do DES estão sendo usados para obter medidas dos parâmetros cosmológicos. Nossos resultados já são referência em várias áreas, mesmo sem o conjunto completo de dados (serão seis anos ao todo). Só nos três primeiros anos, já obtivemos médias dos parâmetros cosmológicos comparáveis a outros grandes projetos no mercado.
Em meio a tantas conquistas acontecendo, qual diria ser a coisa mais empolgante em seu trabalho?
Como colaboração, a parte mais interessante para mim tem sido a questão das ondas gravitacionais. Fora isso, o momento é muito empolgante para a colaboração inteira: estamos no pico de produção de resultados científicos, pela primeira vez abrimos ao público catálogos, resultados para que possam fazer outros projetos. Nos próximos dois anos, à medida que a comunidade for utilizando os dados do DES, uma das coisas que vai acontecer é que praticamente todo astrônomo que estiver trabalhando nesse tipo de dados terá utilizado, em algum momento, parte dos nossos dados. E vai usar isso para pesquisar coisas de que nem tenho ideia. Para mim é muito bom, muito emocionante saber que a câmera que ajudei a construir está servindo para produzir dados que atendem a demandas científicas tão diversas.
Em paralelo à pesquisa no Fermilab, você é docente na Universidade Brandeis. Como organiza a rotina para dar conta de ambas as atividades?
Na verdade, desde setembro de 2017 estou 100% na universidade. Colaboro intensamente com o Fermilab, mas agora tenho meu próprio grupo de pesquisa, com estudantes e pós-docs. É um desafio grande, mas considero que esse passo é de extrema importância para minha trajetória acadêmica.
DECAM OPERA JUNTO AO TELESCÓPIO BLANCO (CENTRO), EM CERRO TOLOLO, CHILE. NA FOTO, APARECEM A VIA LÁCTEA (ESQ.) E A GRANDE NUVEM DE MAGALHÃES (TOPO) (FOTO: REIDAR HAHN/FERMILAB/DIVULGAÇÃO)
Após fazer mestrado e doutorado na USP, você decidiu partir para os EUA. Essa escolha se deveu, em parte, às dificuldades de pesquisar no país?
Não. Na época, minha decisão foi motivada pelo fato de que eu queria muito trabalhar no Dark Energy Survey — e o Fermilab era uma das instituições líderes naquele projeto. O DES estava planejando começar observações pouco tempo depois do término do meu doutorado — terminei em 2010 e a primeira luz da câmera foi em 2012. Estava claro para mim que esse seria um projeto de impacto na área de pesquisa que é do meu interesse, a cosmologia. A oportunidade, portanto, era ideal para mim.
Tendo atuado como pesquisadora aqui e aí, como compara as experiências?
Tive ótimas experiências tanto no Brasil quanto nos EUA. O impacto da minha pesquisa é muito maior agora do que quando eu estava no Brasil, mas como eu estou num estágio diferente da minha carreira, a comparação não seria justa.
Como você avalia o atual momento da ciência e da pesquisa no Brasil?
A situação política e econômica teve um impacto negativo no apoio à ciência, mas o Brasil tem pesquisadores talentosos e bons centros de pesquisa. Esses centros e seus pesquisadores continuam trabalhando para manter e aumentar seu impacto científico, mesmo em tempos tão adversos como os que vivemos. Essa perseverança é muito importante.
Tem esperança de que os políticos brasileiros passem a encarar gastos com ciência e tecnologia como um investimento estratégico para o futuro?
Tenho certeza de que é possível. O exemplo disso é o fato de que tivemos um período de mais de uma década, começando por volta de 2003, em que o investimento em ciência e tecnologia cresceu e foi mantido estrategicamente. Toda a comunidade acadêmica brasileira se beneficiou e o impacto positivo daquele investimento é quantificável. Infelizmente, o momento atual, desde aproximadamente 2016, não é favorável e os danos causados terão impacto negativo persistente por muitos anos. Mas a experiência anterior demonstrou que sim — é possível.
FONTE: REVISTA GALILEU
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