Giuseppe Piazzi usou este instrumento, chamado um Círculo de Ramsden, para descobrir Ceres no dia 1 de janeiro de 1801. O telescópio está em exposição no Observatório de Palermo na Sicília.
Crédito: NASA/JPL-Caltech/Observatório de Palermo
O Dia de Ano Novo, 1801, o alvorecer do século XIX, foi um momento histórico para a astronomia e para uma missão espacial chamada Dawn mais de 200 anos depois. Nessa noite, Giuseppe Piazzi apontou o seu telescópio para o céu e observou um objeto distante que conhecemos agora como Ceres.
Atualmente, a missão Dawn da NASA permite-nos observar Ceres em detalhes incríveis. A partir das imagens que a Dawn transmitiu ao longo do último ano, sabemos que Ceres é um corpo altamente craterado com diversas características à superfície, características estas que incluem uma montanha cónica e mais de 130 manchas refletivas de material que é provavelmente sal. Mas naquela noite de 1801, Piazzi não tinha a certeza do que estava vendo quando observou um pequeno ponto de luz através do seu telescópio.
"Quando Piazzi descobriu Ceres, explorá-lo estava para lá da imaginação. Mais de dois séculos depois, a NASA enviou uma máquina numa viagem cósmica de mais de 4,8 mil milhões de quilómetros para alcançar o mundo misterioso que avistou," afirma Marc Rayman, diretor da missão e engenheiro-chefe da Dawn no JPL da NASA em Pasadena, no estado americano da Califórnia.
Piazzi foi diretor do Observatório de Palermo, na Sicília, Itália, que recolheu documentos e instrumentos da época do astrónomo e publicou uma brochura sobre a descoberta de Ceres. De acordo com o observatório, Piazzi estava a trabalhar num catálogo de posições estelares no dia 1 de janeiro de 1801, quando notou algo cuja "luz era um pouco fraca e colorida como Júpiter." Ele observou o objeto nas noites seguintes e viu que a sua posição tinha mudado ligeiramente.
O que era aquele objeto? Piazzi escreveu aos seus colegas astrónomos Johann Elert Bode e Barnaba Oriani a contar que tinha descoberto um cometa.
"Eu apresentei esta estrela como um cometa, mas devido à sua falta de nebulosidade e ao seu movimento lento e bastante uniforme, sinto no meu coração que, talvez, poderá ser algo melhor do que um cometa. No entanto, deveria ter muito cuidado ao passar esta conjetura ao público," escreveu Piazzi a Oriani.
Um Planeta em Falta?
Piazzi não manteve totalmente este segredo. Ele disse à imprensa que este objeto era um cometa, mas não forneceu dados das suas observações, o que gerou críticas de outros astrónomos. Piazzi, em seguida, ficou doente durante algum tempo e disse que não podia mais observar o objeto.
À medida que os jornais espalhavam a notícia da descoberta de um cometa, o astrónomo Jérôme de Lalande, em Paris, escreveu a Piazzi solicitando dados relevantes em fevereiro. O astrónomo italiano fez-lhe a vontade em abril, depois de recuperar da sua doença. Um dos estudantes de Lalande, Johann Karl Burckhardt, fez cálculos que revelaram que a descoberta de Piazzi não tinha uma órbita consistente com a órbita de um cometa. Em vez disso, os dados pareciam melhor corresponder a uma órbita circular.
O Observatório de Palermo na Sicília, Itália, onde Piazzi descobriu Ceres, alberga hoje uma variedade de instrumentos astronômicos históricos.
Crédito: Elizabeth Landau
Claro, não havia e-mail nesses dias e as cartas que Piazzi escreveu aos amigos Bode e Oriani acerca do "cometa" chegaram com atraso devido às Guerras Napoleónicas. Alcançaram, finalmente, as mãos dos astrônomos em março.
A notícia foi especialmente interessante para Bode porque havia defendido a hipótese Titius-Bode: que as posições dos planetas no nosso Sistema Solar seguiam um padrão específico, que prevê a distância de cada planeta ao Sol. Úrano, descoberto em 1781, também encaixava na previsão. Mas o padrão também exigia outro planeta, ainda não descoberto, entre Marte e Júpiter.
Para encontrar este planeta em falta, um grupo de astrónomos alemães estabeleceu, em 1800, uma sociedade chamada "Polícia Celeste" (Himmelspolizei em alemão), com Franz Xaver von Zach como secretário. O grupo consistia de 24 astrônomos e, cada um, estudava uma área com 15 graus no céu zodiacal em busca do objeto ausente. No entanto, Piazzi só recebeu o seu convite para se juntar ao clube depois de avistar Ceres.
Bode calculou uma órbita com base nos dados de Piazzi e acreditava que o objeto que Piazzi tinha observado era o planeta que encaixava na sua fórmula (que mais tarde foi desacreditada). Oriani, por sua vez, também calculou uma órbita e no dia 7 de abril pediu a von Zach para publicar a notícia no seu bem conhecido jornal de astronomia, Monatliche Correspondenz, que tal planeta pode ter sido descoberto.
Quase um "Cometa Perdido"
Na primavera de 1801, além de Piazzi, ninguém tinha sido capaz de observar o novo objeto celeste por causa do céu nublado e da posição do objeto na sua órbita - já não era visível à noite e o Sol, claro, bloqueava a vista dos astrônomos. Entretanto, Piazzi ainda não tinha publicado nada sobre o objeto, enquanto continuava a refinar os seus dados. Vários dos seus colegas ficaram chateados por Piazzi reter informações. Sem os dados das suas observações, que ficaram concluídas no dia 11 de fevereiro, a confirmação da descoberta seria mais difícil - Ceres estava perdido desde fevereiro.
Porque é que Piazzi hesitou em tornar estes dados públicos? Uma razão poderá ser que, apesar de Piazzi ter sido um observador experiente, não tinha conhecimentos teóricos sólidos de astronomia e por isso não conseguia calcular órbitas rapidamente. Em segundo lugar, ele arriscava a credibilidade e a reputação, tanto de si próprio como a do observatório. Mas, enquanto vacilava, colegas na Alemanha como Bode acreditavam firmemente que tinha que haver um planeta entre Marte e Júpiter. Foi a sua convicção que ajudou a manter o trabalho em curso, afirma Ileana Chinnici, que editou a brochura do Observatório de Palermo sobre Ceres.
"Sem a determinação dos astrônomos alemães, Piazzi teria sido, na melhor das hipóteses, apenas o descobridor de um cometa perdido. Eles 'acreditavam' na existência do planeta e foram impulsionados pelo esforço em confirmá-la. Isto mostra quão poderosas são as ideias, modelos, as teorias - ontem, assim como hoje," comenta Chinnici.
A Procura por Ceres
Finalmente, em julho de 1801, Piazzi dedicou-se a calcular a órbita do objeto e tornou públicos os seus dados sobre as observações no início desse ano. E enquanto outros astrônomos já tinham dado diversos nomes - como Juno, Hera e Piazzi (em honra ao astrônomo) - o próprio Piazzi anunciou que a "nova estrela" seria chamada Ceres Ferdinandea. O segundo nome "Ferdinandea" era em honra do Rei Fernando da Sicília.
Ceres, a deusa romana da agricultura, era também a padroeira da Sicília, onde Piazzi vivia e trabalhava. Bode, que queria chamar Juno ao objeto, concordou com Ceres: "Descobriu-o em Touro e foi novamente observado em Virgem, Ceres dos tempos antigos. Estas duas constelações são o símbolo da agricultura. Esta ocorrência é verdadeiramente única."
No final de julho de 1801, muitos astrônomos acreditavam que Ceres era um planeta, mas precisavam de mais confirmações e observações. Piazzi publicou o seu conjunto completo de dados no jornal de von Zach em setembro e, ao fazê-lo, captou a atenção de um jovem matemático que se tornaria fundamental para o destino de Ceres.
Com vinte e quatro anos, Carl Friedrich Gauss estava a fazer experiências com modelos matemáticos que mais tarde o tornariam famoso. Quando aplicou estes métodos a Ceres, obteve previsões diferentes para a sua posição, diferentes das que outros haviam calculado. Embora houvesse quem ficasse cético dos resultados de Gauss, os seus cálculos permitiram com que von Zach fosse o primeiro a observar Ceres novamente, no dia 7 de dezembro de 1801, seguido por outros astrônomos proeminentes da época e pelo próprio Piazzi no dia 23 de fevereiro de 1802.
Asteroides: Uma Nova Categoria de Objetos
Nós damos crédito a Gauss pelo cálculo da órbita de Ceres. Mas ele não respondeu a uma questão fundamental: o que é Ceres?
Em março de 1802, Heinrich Wilhelm Matthias Olbers descobre um segundo objeto, semelhante, que mais tarde fica conhecido como Pallas. William Herschel, um dos astrónomos mais famosos de todos os tempos, escreveu um artigo propondo que tanto Ceres como Pallas representavam uma classe inteiramente nova de objeto: asteroides. Acerca de Ceres, Herschel escreveu: "se nós o chamássemos de planeta, não preencheria o espaço entre Marte e Júpiter com a dignidade exigida por essa posição."
Embora Herschel considerasse a descoberta do primeiro exemplo de um asteroide, por Piazzi, como uma grande conquista, Piazzi estava decepcionado. Ele pensava que Herschel, o descobridor de Úrano, apenas queria minimizar Ceres. Piazzi escreveu a Oriani: "Que sejam chamados planetoides ou cometoides, mas nunca asteroides. [...] Se Ceres é chamado de asteroide, então também Úrano."
No entanto, a porta abriu-se para a observação de muitos mais asteroides. As descobertas de Juno em 1804 e Vesta em 1807 (que mais tarde se tornaria no primeiro alvo da missão Dawn da NASA) reforçaram a noção de Herschel de que os asteroides são uma classe própria. Herschel cunhou o termo "asteroide" devido à sua aparência semelhante a uma estrela através dos telescópios. Hoje, sabemos que existem centenas de milhares de asteroides na cintura principal de asteroides entre Marte e Júpiter.
O Legado de Piazzi
Piazzi não podia ter sabido que o Telescópio Espacial Hubble da NASA forneceria, um dia, muitas imagens intrigantes de Ceres, permitindo com que os cientistas confirmassem que o corpo é, de facto, redondo como a Terra. Ele nem imaginava que em 2006 a União Astronômica Internacional atualizasse o estatuto de Ceres, de asteroide para planeta anão, recebendo a mesma classificação que Plutão, que só foi descoberto mais de um século depois da sua morte. Ele não podia saber que, em 2007, a missão Dawn da NASA seria lançada a partir de um local chamado Cabo Canaveral, na Flórida, para embarcar numa viagem sem precedentes para orbitar Vesta e Ceres.
Ele provavelmente também nem imaginava que um observatório espacial, cujo nome homenageia Herschel, iria descobrir em 2013 a emanação de vapor de água em Ceres, no seguimento de observações de hidróxido em 1992 pelo IUE (International Ultraviolet Explorer) da NASA.
Imagem de Ceres em cores naturais, obtida pela sonda Dawn em maio de 2015.
Crédito: NASA/JPL-Caltech/UCLA/MPS/DLR/IDA/Justin Cowart
Nem poderia ter adivinhado que no dia 6 de março de 2015, a Dawn seria capturada com sucesso para órbita de Ceres e passaria o resto do ano a enviar fotos e outros dados valiosos para a Terra. Ele não podia saber que os cientistas usariam as capacidades únicas do Telescópio Espacial Hubble em novembro de 2015 para observar Ceres no espectro ultravioleta, complementando as observações da Dawn.
Este mês celebra-se o 215.º aniversário da descoberta de Ceres e a Dawn observa o planeta anão a partir da sua órbita mais baixa: a 385 km da superfície. As muitas crateras e outras características que Piazzi não podia observar com o seu telescópio estão a receber os nomes de divindades agrícolas ou festivais, na continuação do tema que Piazzi iniciou com o nome "Ceres."
"O nosso conhecimento, as nossas capacidades, o nosso alcance e até mesmo a nossa ambição estão muito além do que Piazzi podia ter imaginado e, mesmo assim, é graças à sua descoberta que os podemos aplicar e aprender mais, não só sobre o próprio Ceres, mas também sobre o alvorecer do Sistema Solar," conclui Rayman.
FONTE: http://www.ccvalg.pt/astronomia/
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