Até então, pensava-se que uma carta famosa em que Galileu critica a Bíblia havia sido adulterada para comprometê-lo. Agora, pesquisadores revelaram que ele descascou mesmo o abacaxi – e só depois fez rasuras para baixar o tom.
Por Bruno Vaiano
Em 12 dezembro de 1613, a grã-duquesa Cristina perguntou de curiosidade ao matemático Benedetto Castelli, professor da Universidade de Pisa, se era a Terra o centro do universo. Até onde se sabe, foi um papo leve, com salmos bíblicos mencionados aqui e ali à título de argumentação. Nada de acusações graves por parte da nobre – nem de blasfêmias por parte do cientista.
Castelli foi aluno de Galileu Galileu, então acabou tocando no assunto com seu antigo professor. Galileu ficou animado com o papo, e em 21 de dezembro respondeu a Castelli com uma carta de sete páginas, em que descrevia resumidamente suas observações astronômicas. Entre as conclusões mencionadas, estava a de que é a Terra que gira em torno do Sol, e não o contrário. Dois anos depois, em 1615, Galileu acabaria enviando uma versão estendida e cautelosa da mesma carta à própria grã-duquesa, que nutria cada vez mais interesse pelo tema.
O problema é que cartas, nessa época, não eram lidas só por seus destinatários. Elas circulavam de mão em mão pelas ruas, como se fossem textões de Facebook analógicos – ou mixtapes de rap nos anos 1980. A mensagem comprometedora caiu nas mãos do frade dominicano Nicolò Lorini, que a confiscou e depois alterou certos trechos para passar a impressão de que os ataques de Galileu à doutrina católica haviam sido muito mais violentos do que foram de fato. Dedo-duro.
Essas cartas, 20 anos depois, seriam utilizadas pela Inquisição – o órgão de vigilância de pecadores da Igreja Católica – para acusar o astrônomo de heresia. Em 1633, ele foi condenado a prisão domiciliar pelo resto da vida. Apesar disso, Galileu era um católico praticante, e sempre tentou argumentar com parcimônia que os trechos da Bíblia que afirmavam a imobilidade da Terra podiam ser equilibrados com o modelo heliocentrista que já havia sido proposto por Copérnico no século anterior. Ele afirmava que passagens mais difíceis do livro sagrado haviam sido simplificadas pelos escribas para facilitar a compreensão do público e não deveriam ser interpretadas ao pé da letra.
Até hoje não havia uma maneira de provar a alegação de que Lorini havia adulterado a carta. Essa versão da história se tornou a favorita dos livros porque pinta Galileu como mocinho e Lorini como trapaceiro. Mas era impossível excluir a possibilidade de que Galileu tivesse mesmo descascado o abacaxi na versão que chegou nas mãos de Castelli – e, depois que a bomba estourou, editado o próprio texto para enviar uma versão oficial atenuada ao Vaticano e tentar enganar o tribunal.
Pois é: calhou que foi isso mesmo que aconteceu. Uma versão até então desconhecida da carta foi descoberta neste ano na biblioteca da Royal Society de Londres pelo estudante Salvatore Ricciardo, pós-doutorando da Universidade de Bergamo. Foi um acidente: ele não esperava encontrá-la nos arquivos da instituição. O documento manuscrito contém as exatas palavras da carta supostamente adulterada enviada por Lorini ao Vaticano – e as rasuras que Galileu fez em cima dela para tentar um meio de campo com a Igreja. Por exemplo: em um ponto em que o astrônomo se referia a certas proposições da Bíblia como “falsas, se forem interpretadas de acordo com o sentido literal das palavras”, ele riscou a palavra “falsas” e colocou no lugar um “parecem diferentes de verdade”.
A carta editada por Galileu chegou ao Vaticano por meio de seu amigo Piero Dini, um clérigo com alguma influência política. Dini, naturalmente, não sabia que seu amigo havia lhe entregue uma versão atenuada sob medida, e tentou defendê-lo. Não dá para culpar Galileu: ele estava tentando salvar a própria pele. E não acabar como Giordano Bruno, que em 1600 morreu na fogueira por defender ideias parecidas. Vida de visionário é difícil.
FONTE: REVISTA SUPER INTERESSANTE
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