Faça-se a luz - Entenda o que é e como funciona o acelerador de partículas Sirius – a fábrica de luz de 1,8 bilhão de reais que vai revolucionar a ciência brasileira.
Por Bruno Vaiano | Ilustração: Rodrigo Damati | Design: Yasmin Ayumi | Edição: Ana Carolina Leonardi
A gente tinha uma margem de erro de 5 milímetros”, me diz um senhor de óculos retangulares. Ele aponta para um buraco na parede.
“E o que o operário achou disso, na hora de fazer o furo?”
“Ah, ele chorou, né?”
Eu poderia dizer que Walter Marchesini Jr. é engenheiro de automação – mas importante mesmo é dizer onde.
Walter trabalha no maior acelerador de partículas do Hemisfério Sul, localizado em Campinas, a 100 km da capital paulista. Lá, ele me explicou, absolutamente tudo foi feito com uma precisão absurda. Dos buracos na parede ao chão. O piso de concreto tem 1,5 m de espessura, mas é tão plano que, ao longo de sua extensão, o maior desnível é de menos de 2 centímetros. A temperatura do ar-condicionado flutua no máximo 0,1 ºC. A água e o esgoto passam pelo encanamento sem causar a mínima vibração – todos os canos são apoiados em molas, e têm calibre maior que o necessário, para manter o ambiente imperturbável.
Essa precisão toda não é mero capricho. O acelerador, chamado Sirius, é a empreitada mais ambiciosa – e cara – da história da ciência brasileira. Orçado em R$ 1,8 bilhão, ele começou a ser idealizado em 2003, mas as obras só saíram do papel em 2014. Quando entrar em operação, em 2019, o Sirius será capaz de impulsionar elétrons a 1,07 bilhão de quilômetros por hora – quase a velocidade da luz. É o suficiente para ir de Londres a Nova York em 0,018 segundo. Toma essa, Concorde. Além de viajar nesse pique, cada elétron a bordo do Sirius vai atingir uma energia de 3 GeV – equivalente a ser submetido a um choque de 3 bilhões de volts (a tomada da sua casa tem tensão de, no máximo, 220 volts). Eletrizante.
O interior do Sirius, ainda em obras. Cada recorte na parede de concreto abrigará uma cabana para realização de experimentos científicos. (Yasmin Ayumi/Superinteressante)
A essa altura, você já deve estar se perguntando por que gastaram tanto dinheiro público para construir um autorama de elétrons. Justo. É o seguinte: existem cerca de 30 mil aceleradores de partículas em operação no mundo. O único famoso – e, não por coincidência, o maior – é o grande colisor de hádrons (LHC), um túnel circular de 27 quilômetros na fronteira da Suíça com a França. Sua função é fazer ciência pura: analisar os dados gerados por colisões de partículas, para descobrir coisas como o bóson de Higgs – a tal “partícula de Deus”.
Beira o esotérico. Mas acontece que a grande maioria dos aceleradores tem funções mais mundanas. O Sirius, por exemplo, será uma fonte de luz síncrotron, isto é: um microscópio muito, muito potente. Ou algo como uma máquina de tomografia gigante. Essa capacidade de olhar as coisas muito de pertinho vem da intensidade da radiação liberada pelos elétrons quando eles são forçados a fazer uma curva. Usando essa radiação, é possível estudar doenças neurodegenerativas como Alzheimer e Parkinson, criar novos remédios e desenvolver métodos melhores para extrair petróleo de rochas, entre outras aplicações de imensa importância econômica e social. Mas espera. Saúde? Petróleo? Falando assim, fica confuso. Então vamos entender, passo a passo, como o Sirius funciona.
Estilingue épico
Para merecer o nome de “acelerador de elétrons”, o Sirius precisa, é claro, produzir elétrons e dar um jeito de acelerá-los. Esses processos iniciais acontecem em uma máquina chamada acelerador linear (a sigla é Linac). Ela tem esse nome justamente porque ali os elétrons percorrem uma linha reta. Produzir elétrons é fácil: no começo do Linac há um pequeno filamento de metal, como o de uma lâmpada doméstica. Basta aquecer esse filete para liberar um monte deles.
Depois que os elétrons são produzidos, é preciso acelerá-los. Funciona assim: da mesma maneira que um vaso cai de cima da mesa e se quebra por causa da gravidade, elétrons são atraídos de um lugar metaforicamente mais alto para um mais baixo por causa de algo chamado diferença de potencial.
Quanto maior a diferença de potencial entre dois pontos, com mais vontade os elétrons se deslocam de um ponto em direção ao outro. A rede elétrica da sua casa, como já dissemos, opera com uma diferença de potencial de no máximo 220 volts. No Linac, ela é de 80 mil volts – 727 vezes maior. Com um incentivo desses, os elétrons se lançam desesperadamente do filamento onde nasceram para a outra ponta de um tubo, e são lançados para fora com uma energia enorme.
Este é o acelerador linear. Veja seu tamanho em relação ao resto do Sirius no infográfico mais abaixo. (Yasmin Ayumi/Superinteressante)
No pique, eles passam para a próxima fase: outro tubo. Ele é bem maior, tem cor de cobre e parece uma engenhoca de Star Wars. No interior desse tubo – mantido num vácuo ainda mais vazio que o vácuo do espaço –, injeta-se uma onda eletromagnética com potência de 50 megawatts. É o suficiente para abastecer umas 8 mil casas. Ondas, você sabe, sobem e descem – têm cristas e vales. E os elétrons devem ser mantidos sempre na crista.
O princípio é o mesmo de surfar: se você pega a onda no ponto mais alto, ela te leva de carona e você ganha energia. Se você pega a onda no ponto mais baixo, toma um caldo. Os elétrons só conseguem alcançar a energia necessária para o tipo de experimento feito no Sirius se, ao longo de todo o trajeto, eles sempre pegarem a onda no ponto mais alto.
Depois de passar por esse segundo tubo, os elétrons já estão praticamente na velocidade da luz. É nesse ponto que eles saem do acelerador linear e passam a andar em círculos no Sirius. Eles dão voltas e mais voltas. O trecho final da jornada é uma estrutura chamada “anel de armazenamento”: um círculo com 518 metros de circunferência onde eles dão 580 mil voltas por segundo.
O objetivo dessa corrida maluca é simples: se você pegar uma toalha molhada, segurá-la por uma ponta e girá-la no ar, a água em excesso vai espirrar para os lados, molhando todo o ambiente. Quando elétrons acelerados fazem uma curva, eles também deixam espirrar uma coisa: radiação. No Sirius, existem ímãs que forçam os elétrons a fazer curvas o tempo todo. Por tabela, eles liberam radiação o tempo todo.
É essa radiação extremamente intensa – que consiste em vários tipos de “luz”, da infravermelha ao raio X – que é usada nos experimentos. No fim, é ela que importa – e não os elétrons em si.
1. Acelerador linear
Produz os elétrons – e os acelera praticamente à velocidade da luz.
2. Booster
Aqui, os elétrons giram até alcançar a energia necessária para passar para a próxima fase.
3. Anel de armazenamento
Na energia máxima, os elétrons, forçados por ímãs, liberam raios X nas curvas.
4. Linhas de luz
São elas que levam os raios X até as cabanas.
5. Cabanas
Dentro delas, os cientistas usam os raios X hiperenergéticos para fazer imagens microscópicas.
Cada vez que completam uma volta, os elétrons passam por estruturas chamadas cavidades de radiofrequência, que fornecem uma dose de energia renovada para compensar a que foi perdida ao longo do trajeto. Cada elétron dá 580 mil voltas por segundo no anel de armazenamento, com 518 m de circunferência. As paredes de concreto que envolvem o anel de armazenamento e o booster têm 1,5 m de espessura e protegem os cientistas da radiação.
Que tiro foi esse?
Os raios X do Sirius entram pelo cano – literalmente. Eles se enfiam por dutos que ficam apontados para as amostras que os cientistas querem “fotografar”. Esse é o mesmo princípio de uma máquina de raio X hospitalar – só que, nela, a amostra é sua perna quebrada. Também é o princípio de um tomógrafo – que nada mais é do que um raio X capaz de fazer imagens 3D.
“No final das contas, muita coisa que vamos fazer no Sirius a gente também poderia fazer em uma máquina de tomografia de hospital”, explica a física Nathaly Archilha, do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), responsável por construir o Sirius e um dos quatro laboratórios do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM).
Mas se é assim, então o que torna o Sirius especial? Uma das diferenças está na rapidez. Uma tomografia do tipo que é feita lá, em um hospital, demora até 48 horas. No UVX, um acelerador de elétrons menor e mais antigo usado pelo CNPEM desde 1998, 40 minutos. No Sirius, levará meros segundos. “Aqui, muito mais fótons [as partículas que compõem a luz] atingem regiões bem pequenininhas a cada segundo. Isso permite fazer imagens mais rapidamente”, diz Archilha. Para tanta velocidade, haja radiação: se você passasse 20 segundos nos aposentos selados em que passam os raios X, seria exposto a uma radiação equivalente a de fazer cem radiografias.
Além de ser muito mais rápido que um tomógrafo, o Sirius alcançará um zoom que nenhum outro tipo de máquina no mundo alcança. Por exemplo: o biólogo Matheus de Castro trabalha no Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), também parte do CNPEM. Com a ajuda de Archilha, ele usa raios X anabolizados pelo UVX para fotografar, neurônio por neurônio, os cérebros de camundongos com doenças como Alzheimer, Parkinson ou epilepsia. O resultado é um mapa que registra como cada neurônio interage dentro do cérebro doente – o que, no futuro, permitirá desenvolver tratamentos para corrigir os problemas. Com o zoom do Sirius, vai ser possível fotografar o interior de células, e não só as conexões entre elas. Teremos retratos das menores estruturas do organismo, como mitocôndrias e ribossomos.
Matheus no interior de uma das cabanas do acelerador menor, o UVX. Na tela, ele mostra a visualização 3D do cérebro de um camundongo gerada pelos raios X do equipamento.
Matheus no interior de uma das cabanas do acelerador menor, o UVX. Na tela, ele mostra a visualização 3D do cérebro de um camundongo gerada pelos raios X do equipamento. (Yasmin Ayumi/Superinteressante)
Pesquisas inovadoras como essa só podem surgir da interação entre cientistas de diferentes especialidades. E é esse o objetivo central por trás do Sirius. “Com um acelerador de elétrons, você une desafios técnicos à possibilidade de atender uma comunidade enorme de pesquisadores”, diz José Roque, diretor do CNPEM.
De fato, a versatilidade do Sirius é quase infinita: serve para qualquer tarefa que exija um zoom homérico. A esperança é que ele dê essa mesma ampliação à ciência brasileira – que, apesar dos tropeços e cortes de verba, está prestes a dar o passo mais ambicioso da sua história.
Que tiro foi esse?
Os raios X do Sirius entram pelo cano – literalmente. Eles se enfiam por dutos que ficam apontados para as amostras que os cientistas querem “fotografar”. Esse é o mesmo princípio de uma máquina de raio X hospitalar – só que, nela, a amostra é sua perna quebrada. Também é o princípio de um tomógrafo – que nada mais é do que um raio X capaz de fazer imagens 3D.
“No final das contas, muita coisa que vamos fazer no Sirius a gente também poderia fazer em uma máquina de tomografia de hospital”, explica a física Nathaly Archilha, do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), responsável por construir o Sirius e um dos quatro laboratórios do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM).
Mas se é assim, então o que torna o Sirius especial? Uma das diferenças está na rapidez. Uma tomografia do tipo que é feita lá, em um hospital, demora até 48 horas. No UVX, um acelerador de elétrons menor e mais antigo usado pelo CNPEM desde 1998, 40 minutos. No Sirius, levará meros segundos. “Aqui, muito mais fótons [as partículas que compõem a luz] atingem regiões bem pequenininhas a cada segundo. Isso permite fazer imagens mais rapidamente”, diz Archilha. Para tanta velocidade, haja radiação: se você passasse 20 segundos nos aposentos selados em que passam os raios X, seria exposto a uma radiação equivalente a de fazer cem radiografias.
Além de ser muito mais rápido que um tomógrafo, o Sirius alcançará um zoom que nenhum outro tipo de máquina no mundo alcança. Por exemplo: o biólogo Matheus de Castro trabalha no Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), também parte do CNPEM. Com a ajuda de Archilha, ele usa raios X anabolizados pelo UVX para fotografar, neurônio por neurônio, os cérebros de camundongos com doenças como Alzheimer, Parkinson ou epilepsia. O resultado é um mapa que registra como cada neurônio interage dentro do cérebro doente – o que, no futuro, permitirá desenvolver tratamentos para corrigir os problemas. Com o zoom do Sirius, vai ser possível fotografar o interior de células, e não só as conexões entre elas. Teremos retratos das menores estruturas do organismo, como mitocôndrias e ribossomos.
Matheus no interior de uma das cabanas do acelerador menor, o UVX. Na tela, ele mostra a visualização 3D do cérebro de um camundongo gerada pelos raios X do equipamento. (Yasmin Ayumi/Superinteressante)
Pesquisas inovadoras como essa só podem surgir da interação entre cientistas de diferentes especialidades. E é esse o objetivo central por trás do Sirius. “Com um acelerador de elétrons, você une desafios técnicos à possibilidade de atender uma comunidade enorme de pesquisadores”, diz José Roque, diretor do CNPEM.
De fato, a versatilidade do Sirius é quase infinita: serve para qualquer tarefa que exija um zoom homérico. A esperança é que ele dê essa mesma ampliação à ciência brasileira – que, apesar dos tropeços e cortes de verba, está prestes a dar o passo mais ambicioso da sua história.
FONTES: Revista Super Interessante - mrcaioczar - Alexandra Makowski
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