O FÍSICO IVAIR GONTIJO (FOTO: ARQUIVO PESSOAL)
De Minas para o Planeta Vermelho: físico Ivair Gontijo conta em livro sua participação no desenvolvimento da sonda Curiosity
Da pequena cidade mineira de Moema, às margens do Rio São Francisco, Ivair Gontijo já foi até Marte. Não pessoalmente, é claro. Mas foi graças ao seu trabalho que o veículo Curiosity pousou no Planeta Vermelho em agosto de 2012.
O físico brasileiro é um dos pesquisadores do Jet Propulsion Laboratory (JPL), da NASA, e conta sua história no livro A Caminho de Marte — A Incrível Jornada de um Cientista Brasileiro até a NASA (Editora Sextante). Sua trajetória também será tema de palestra na 12ª Campus Party, que acontece de 12 a 17 de fevereiro em São Paulo.
O Curiosity é o mais sofisticado veículo já construído pelo homem para ser enviado a outro planeta. O projeto custou, no total, US$ 2,5 bilhões. Se os radares projetados por Gontijo não funcionassem, tudo isso seria perdido: o Curiosity se espatifaria no solo marciano e não saciaria nossa curiosidade de receber informações sobre nosso vizinho planetário. Com o sucesso da missão, até hoje o veículo manda dados para a Terra diariamente, além de ter ajudado a comprovar, por exemplo, que existia água líquida em Marte.
A trajetória de Gontijo é bastante peculiar. Isso porque, até decidir cursar Física na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ele trabalhava em uma fazenda. O caminho até a NASA teve ainda doutorado e pós-doutorado, na Escócia e nos Estados Unidos.
No livro, o cientista conta como foi difícil conseguir o emprego na agência espacial. Após diversas tentativas frustradas, finalmente conseguiu uma chance no laboratório do JPL. Agora, depois do sucesso da empreitada com o Curiosity, ele está às voltas com uma nova missão, a Mars2020. Mais uma oportunidade para Gontijo cravar a bandeira mineira em Marte. Confira a entrevista completa a seguir.
Uma pergunta que provavelmente sempre fazem a você: qual foi a trajetória do sujeito que saiu do interior de Minas Gerais e chegou até a NASA?
Para chegar a ser um engenheiro ou cientista da NASA é preciso começar em algum lugar, e, na verdade, não importa muito onde a caminhada começa. Tenho colegas de trabalho do mundo inteiro, inclusive dos Estados Unidos, é claro, mas também pessoas de México, Argentina, Guatemala, França, Dinamarca, Alemanha, Itália, Filipinas, Romênia, Austrália, Rússia, China...
Meu caso é parecido com o de muitos dos meus colegas. Quando a gente é jovem, quase tudo é possível se a gente formular um plano de longo prazo e tiver paciência e foco para perseguir aquele objetivo. Costumo dizer aos estudantes brasileiros: o que fazemos entre os 10 e os 25 anos de idade determinará como viveremos os próximos 50 anos de nossas vidas.
Desde criança era fascinado por ciência, mas trabalhar para a NASA não era um objetivo naquela época. Ninguém havia nos dito que poderíamos ter sonhos assim! Se meu caso serve de exemplo, precisamos tentar de tudo quando estamos no início da carreira. Alguma coisa vai dar certo e, em geral, aquelas oportunidades pequenas acabam sendo as melhores. Precisamos aceitar riscos e não ficar acomodados. Não podemos sempre escolher o caminho mais fácil e seguro na vida. Sempre tentei assumir a responsabilidade pelo meu futuro, e chegar até a NASA aconteceu mais ou menos como consequência disso.
As pessoas próximas o incentivavam ou procuravam demovê-lo da ideia de tentar trabalhar na NASA?
Essa ideia surgiu bastante tarde, já que minha primeira carreira foi como técnico agrícola e administrador de fazenda. Fiz o segundo grau em uma escola agrotécnica e parei de estudar por três anos entre o segundo grau e a universidade. Administrei a fazenda Água Branca, que fica no norte de Minas Gerais — a cidade mais próxima está a 100 quilômetros de distância. Eu tinha 18 anos quando comecei a trabalhar lá e fiquei impressionado com as noites, que eram muito escuras e tinham um céu espetacular. Acho que foi lá que aprendi a gostar de astronomia.
Quando disse ao pessoal da fazenda que iria pedir demissão e fazer vestibular para Física, eles acharam aquilo engraçado e me disseram que, em primeiro lugar, eu não passaria no vestibular, e em segundo, seria um grande desperdício, pois eu já havia acumulado bastante conhecimento em agropecuária. Eles tinham razão nos dois casos. Por isso, tratei de me preparar bem para passar no vestibular. Mais tarde, quando estava cursando Física na UFMG, fiz uma iniciação científica em Astronomia e aprendi muito sobre essa área.
UM AUTO-RETRATO FEITO PELO CURIOSITY, DA NASA, EM 15 DE JUNHO DE 2018, EM MARTE. NA FOTO, É POSSÍVEL VER COMO O PLANETA FICOU APÓS A TEMPESTADE DE AREIA. (FOTO: NASA/JPL-CALTECH/MSSS)
E você já gostava dos assuntos ligados à astronomia desde criança?
Minha infância foi uma época muito difícil, não olho para o passado com saudades. Meu pai faleceu quando eu tinha 5 anos e minha mãe ficou com nove filhos para criar e educar. O dinheiro era pouco, e as preocupações, muitas. A gente cresce e amadurece rápido em uma situação assim. Era óbvio que não teríamos chance alguma na vida se não inventássemos nós mesmos nosso próprio futuro.
Sempre fui fascinado pela matemática e pelas ciências em geral. Eu e alguns colegas estudávamos geometria fazendo desenhos na areia, na pequena cidade de Moema, no centro-oeste de Minas. No entanto, não aprendi nada sobre astronomia durante a infância. Não era uma coisa que fazia parte do meu dia a dia nas décadas de 1960 e 1970. Hoje, fico impressionado com o nível de sofisticação de crianças de 8 ou 10 anos. Muitas delas, no Brasil e nos Estados Unidos, me fazem perguntas que demonstram um nível de informação e conhecimento invejáveis sobre astronomia.
Em sua opinião, o que falta para que o brasileiro dê valor à ciência?
Os brasileiros em geral gostam muito de tecnologia e de ciência. O acesso à ciência e às ideias científicas ainda é bastante restrito, por isso acredito que nós, cientistas, engenheiros e tecnólogos precisamos divulgar a ciência de uma forma clara e fácil de entender. Quando as pessoas entendem, elas se entusiasmam com ciência e tecnologia.
Descrevo no livro, por exemplo, os dramas que vivemos quando as coisas não dão certo, quando o tempo é curto demais e mesmo assim temos de continuar a procurar soluções para problemas complexos. Descrevo também a sensação de gol em final de Copa do Mundo quando as coisas dão certo, como na chegada do Curiosity em Marte. Um dos momentos mais emocionantes para mim no projeto do Curiosity foi quando ouvi meu colega na sala de controle do JPL dizendo que o radar que ajudei a construir tinha encontrado o solo marciano e estava controlando o pouso do Curiosity em Marte.
Muitos meios de comunicação no Brasil têm dado mais espaço à ciência — o que é ótimo. Mesmo assim, há muito espaço para crescimento: existem tantas coisas acontecendo em ciência e tecnologia, mas que acabam recebendo somente uma pequena menção...
Você já era fascinado por Marte antes de integrar a equipe do Curiosity?
Desde que comecei a estudar astronomia, entendi que Marte representa um desafio gigantesco para nós, mas ainda assim é um desafio de bom tamanho para a humanidade. Marte tem atmosfera, mas ela é muito diferente da nossa. O planeta fica longe da Terra, mas não longe demais.
Precisamos continuar insistindo para entendermos como o planeta se formou e por que sua evolução tomou um caminho tão diferente da evolução da Terra. Não sabemos ainda se, no passado, alguma vida se formou em Marte ou não. Se o desafio é grande, ele não é grande demais. Quem não gosta de um desafio assim, de bom tamanho?
Você poderia descrever seu trabalho no desenvolvimento do Curiosity?
Liderei o grupo que construiu os transmissores, receptores e o conversor de frequências do radar que controlou os últimos 8 quilômetros da descida do Curiosity em Marte. Esses componentes são o “coração” do radar, porque geram o sinal utilizado para medir a distância entre o veículo e o solo marciano, além da velocidade de descida.
Essas duas informações — altitude e velocidade — eram passadas para o computador de bordo, que controlava retrofoguetes para diminuir a velocidade do veículo de forma que ele pudesse tocar o solo com suas rodas, sem danificar nada. A equipe que construiu esses componentes do radar contava com umas 40 pessoas.
REPRODUÇÃO DA CHEGADA DA SONDA CURIOSITY AO PLANETA VERMELHO (FOTO: DIVULGAÇÃO/NASA)
Qual é a maior descoberta do Curiosity, em sua opinião? O jipinho já cumpriu sua missão no Planeta Vermelho?
Depois do Curiosity, podemos dizer com certeza que houve na cratera Gale um lago estável que durou milhões de anos e formou muitas rochas sedimentares hidratadas. Já sabíamos que houve água líquida correndo na superfície de Marte, mas não sabíamos se teria sido somente um episódio passageiro.
Por exemplo, sabemos que “pedra líquida” ou “granito líquido” existe no planeta Terra, na forma de lava de vulcão, mas isso é uma ocorrência que não dura muito tempo. A descoberta de um lago estável que durou milhões de anos em Marte é simplesmente espetacular! Para existir um lago estável é preciso todo um ciclo hidrológico, com nuvens, chuva, neve e rios abastecendo esse lago.
Além disso, a atmosfera de Marte com certeza era muito mais densa do que é hoje. No presente, a densidade da atmosfera marciana é menos de 1% da densidade da atmosfera terrestre. Isso corresponde à quantidade de ar que existe na Terra a 30 quilômetros de altura. Portanto, agora confirmamos que Marte era muito parecido com a Terra em sua infância, mas seguiu um caminho completamente diferente.
O Curiosity foi projetado para durar por um ano marciano — 687 dias terrestres. Sua missão principal era descobrir pelo menos um ambiente “habitável”, ou seja, com as condições necessárias para formação de vida. Então, essa missão já foi cumprida, pois logo no início de sua carreira em Marte ele encontrou um ambiente onde no passado havia água, materiais orgânicos e uma fonte de energia química que poderia ter mantido vida incipiente se esta tivesse se formado em Marte. Ainda assim, o veículo continua funcionando e transmitindo dados para a Terra todos os dias.
Você está envolvido no projeto Mars2020. Qual é o objetivo dessa nova empreitada da NASA?
Eu sou o engenheiro responsável pelas interfaces entre o instrumento SuperCam e o veículo Mars2020, que irá para Marte em 2020. Isso quer dizer que é minha responsabilidade garantir que haverá espaço suficiente para montar o instrumento no veículo, que o peso do instrumento não será excessivo, que haverá eletricidade para operar o instrumento em Marte, que o software no instrumento vai funcionar junto com o software do veículo, além de uma infinidade de outros detalhes.
O instrumento SuperCam está sendo construído por um grupo de Toulouse, na França, e outro grupo de Los Alamos, no estado do Novo México, nos Estados Unidos. Alvos de calibração serão fornecidos pela Universidad de Valladolid, na Espanha. Desde 2015, tenho viajado tanto para a França quanto para Los Alamos com frequência para reuniões com nossos colegas. Fazemos teleconferências toda semana e desde o ano passado temos reuniões trimestrais na França e em Los Alamos.
O objetivo da Missão Mars2020 é estudar as rochas marcianas e coletar amostras daquelas que tenham algum tipo de material orgânico que possa ter sido “carbono vivente” no passado. Essas amostras serão deixadas em Marte para serem coletadas por uma missão seguinte e, então, trazidas à Terra. Assim, poderemos estudar esses materiais com todas as técnicas e equipamentos que temos nos laboratórios terrestres e que não conseguimos mandar para Marte por serem muito grandes e pesados.
Você acredita na possibilidade da existência de vida extraterrestre em algum lugar do universo?
Acreditar não tem muita importância. Acreditar é chegar a uma conclusão sobre algo, quando não temos evidência suficiente que nos leve a tal conclusão. Ou seja, é o que chamamos no Brasil de “um chute”. Por isso prefiro pensar em probabilidades, pois é um processo mais científico. Conforme falo no livro, pode ser que sejamos os primeiros seres vivos inteligentes em nossa galáxia, a Via Láctea. Afinal de contas, a vida teria de começar em algum local, algum planeta. Não sabemos se isso é verdade ou se, ao contrário, a galáxia está cheia de vida, possivelmente muito mais inteligente do que nós.
As evidências científicas que temos hoje nos mostram que a Terra possui uma relação especial com sua estrela, o Sol: estamos a uma distância perfeita do Sol, o que nos permite ter água liquida estável na superfície. Outros planetas podem ter condições parecidas. Então, no momento, não há informações suficientes para decidir, de uma forma ou de outra, se existe vida em outros planetas. É possível que, entre incontáveis estrelas, existam muitas com sistemas solares e planetas parecidos com o nosso. Precisamos de mais estudos antes de concluir se existe vida em outros planetas; porém, se continuarmos insistindo, um dia vamos responder definitivamente a essa pergunta.
É possível definir quando um humano finalmente chegará a Marte?
Possivelmente, daqui a algumas décadas. É difícil dar uma resposta mais precisa porque isso depende do que a humanidade, em geral, e os governos, em particular, consideram prioritário. Ainda existem desafios técnicos imensos; entretanto, se houver apoio, eles serão superados e os problemas serão resolvidos. Se continuarmos insistindo, com certeza teremos viagens tripuladas para Marte no futuro. E, se quisermos mesmo, o planeta se tornará a segunda morada da espécie humana.
"Precisamos tentar de tudo quando estamos no início da carreira. Não podemos sempre escolher o caminho mais fácil e seguro”
MARTE (FOTO: NASA JPL — CALTECH)
"É possível que, entre incontáveis estrelas, existam muitas com sistemas solares e planetas parecidos com o nosso”
(FOTO: NASA JPL — CALTECH)
LIVRO 'A CAMINHO DE MARTE' (FOTO: A CAMINHO DE MARTE: A INCRÍVEL JORNADA DE UM CIENTISTA BRASILEIRO ATÉ A NASA | IVAIR GONTIJO, EDITORA SEXTANTE, 288 PÁGINAS, R$ 29,80)
FONTE: REVISTA GALILEU
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