A cientista capixaba busca o brilho dos fenômenos mais violentos do Universo para iluminar um mistério: o que é a energia escura?
Por Bruno Vaiano
Marcelle Soares-Santos tinha 5 anos quando descobriu que a luz é mais rápida que o som. Era década de 1980, e sua família havia acabado de se mudar para Parauapebas, no Pará. Ela fazia um passeio com a escola quando um paredão de rocha foi dinamitado nas minas de ferro da região: primeiro, ela viu a explosão, só depois o estrondo alcançou seus ouvidos.
Às 7h40 da manhã de 17 de agosto de 2017, Marcelle experimentou o contrário pela primeira vez: ouviu o estrondo, e só depois observou o clarão correspondente. A cientista, então com 36 anos, estava com seus pertences encaixotados em um apartamento em Chicago, nos EUA, esperando o caminhão de mudança. Foi quando o celular apitou com uma notificação do observatório LIGO-Virgo: duas estrelas de nêutrons – cada uma com 1,4 vez a massa do Sol – haviam colidido a 1 bilhão de anos-luz da Terra.
O LIGO havia detectado o “som” gerado pelo choque: o trabalho da brasileira e sua equipe era apontar um telescópio para o céu e tentar encontrar a emissão de luz correspondente. Isso porque o LIGO não é um observatório comum – do tipo que enxerga ondas eletromagnéticas (isto é, a luz e suas parentes invisíveis, como rádio, raios X e micro-ondas). Ele está mais para um enorme microfone, que detecta outro tipo de onda: as ondas gravitacionais.
(Reidar Hahn/Superinteressante)
Para entender ondas gravitacionais, é preciso primeiro compreender de fato o que é a gravidade. E ela é o seguinte: se você deitar em uma cama coberta de bolinhas de gude, todas vão rolar na sua direção. Afinal, quanto mais pesado é um objeto, mais o colchão afunda. O Universo é como um colchão, só que feito de um tecido diferente: três dimensões de espaço e uma de tempo. E o Sol é você: algo tão massivo que afunda bem esse tecido. É por isso que as bolinhas de gude – como a Terra ou Júpiter – ficam presas em volta dele.
Ondas gravitacionais, por sua vez, ocorrem quando um fenômeno cósmico é tão violento que faz a superfície do colchão subir e descer periodicamente, como o mar. É exatamente o que uma colisão de estrelas de nêutrons provoca. Elas nascem quando uma estrela até 30 vezes maior que o Sol morre e ejeta suas camadas externas. Aí o núcleo – a única coisa que sobra – é compactado até ficar com uns 30 quilômetros de diâmetro. Um pedaço de estrela de nêutrons do tamanho de uma caixa de fósforos pesa 2,1 · 1013 kg – o mesmo que 4 bilhões de elefantes africanos. Ou seja: quando duas dessas trombam, o negócio fica feio. E foi exatamente isso que aconteceu na manhã da mudança de Marcelle.
Vamos revisar: o LIGO detectou as ondas gravitacionais da colisão. Ela e seus colegas precisavam encontrar a luz correspondente. E a colisão de duas estrelas de nêutrons, nem precisa dizer, gera um brilho realmente ofuscante. Acontece que qualquer brilho a 1 bilhão de anos-luz de distância aparece aqui na forma de um pontinho quase invisível. Foi declarada aberta, então, a temporada de caça ao pontinho.
Para a missão, eles usaram um dos telescópios do NOAO – um dos muitos observatórios high tech instalados pela comunidade científica no deserto do Atacama, no Chile, onde o clima árido e o céu limpo criam condições perfeitas para os astrônomos. Lá está instalada a câmera digital de resolução mais alta disponível na superfície da Terra (570 megapixels, ou 57 vezes a de um celular) – máquina que a própria Marcelle ajudou a construir. A câmera, através das lentes do telescópio, fotografou a região do céu em que o LIGO acusou a colisão. À distância correta, havia 30 galáxias. Não deu outra: o pontinho estava em uma delas. A detecção foi um sucesso.
Esse seria, por si só, um feito importante na carreira de qualquer astrofísico. Mas Marcelle usa essas emissões para dar um passo além: calcular a taxa em que o Universo está se expandindo. E, com isso, desvendar um dos maiores mistérios da ciência – a energia escura.
O LIGO é um “L”, e em cada braço de 4 km há um laser. As ondas gravitacionais dessincronizam os lasers – e permitem a detecção. (Guilherme Asthma/Superinteressante)
Marcelle viveu no Pará dos 4 aos 14 anos. Voltou a seu Estado natal e se formou em física na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Depois fez doutorado na USP e, em 2010, começou o pós-doutorado no Fermilab, em Chicago. Foi lá que ela se envolveu com a câmera de 570 megapixels – cuja principal função não é caçar as colisões do LIGO, e sim fotografar galáxias distantes para um megaprojeto chamado Dark Energy Survey (DES, em português, “levantamento sobre energia escura”). Marcelle, hoje, é uma das líderes do DES, e a única mulher negra da equipe. Também é professora na Universidade Brandeis, em Boston – é para lá que ela estava se mudando no começo da matéria.
Para entender o que é a tal energia escura – e por que precisamos da câmera mais potente do mundo para estudá-la –, é preciso voltar ao Big Bang. No início do Universo, tudo o que existe hoje estava concentrado em um ponto de densidade infinitamente alta e dimensões infinitamente pequenas, uma singularidade. Essa singularidade se expandiu, e está em expansão até hoje: dá para imaginar o cosmos como um balão sendo inflado sem parar; e as galáxias, como lantejoulas coladas em sua superfície, afastando-se uma das outras conforme o ar entra.
Mas existe um mistério aí: a velocidade dessa expansão está aumentando. E ninguém sabe por quê. Diante do mistério, surgiu a hipótese da energia escura. Existe alguma coisa acelerando a expansão cósmica. A essa coisa deram o nome de “energia escura”, por pura falta de opção melhor.
“Se você considera o Big Bang sozinho, sem energia escura, a taxa de expansão do Universo deveria ser uniforme ao longo do tempo”, explicou Marcelle à SUPER. “Nos primeiros anos do Universo, era assim de fato, só que agora a expansão está mais rápida.” É como se você empurrasse um Fusca quebrado a 10 km/h numa reta, e depois que você parasse de dar impulso, ele começasse a ir a 15 km/h. Não faz o menor sentido. É por isso que a energia escura é um mistério – e há um projeto inteiro, o DES, dedicado a desvendá-la.
O primeiro passo do DES é saber a que taxa o Universo se expande. Assim, dá para deduzir quanta energia é necessária para realizar tal feito. E, por tabela, saber quanta energia escura existe. Um dos jeitos de calcular a taxa de expansão do Universo é com uma ajudinha de galáxias. Galáxias são aglomerados de bilhões (às vezes trilhões) de estrelas. Por isso, exercem uma atração gravitacional imensa. Uma galáxia sempre tende a atrair outras galáxias, formando aglomerados. O negócio é que, se o Universo está mesmo se expandindo cada vez mais rápido, ele vai separar as galáxias mais rápido do que a gravidade é capaz de juntá-las. Como a taxa de expansão é bem maior hoje do que era antes, dá para deduzir que os aglomerados de galáxias do presente são menores que os do passado.
Não seria ótimo, então, se nós pudéssemos olhar para o passado e comparar os aglomerados de hoje com os de antigamente? Assim, com base no quanto eles estão menores, daria para calcular com precisão quanto o Universo se expandiu.
Os telescópios NOAO, no Chile, recebem as informações do LIGO – e buscam a colisão no céu. (Guilherme Asthma/Superinteressante)
Pois é exatamente isso que faz Marcelle. Sem precisar de máquina do tempo. É que a luz, por mais rápida que seja, tem uma velocidade finita. Assim, a luz dos aglomerados distantes demora mais para chegar à Terra do que a luz dos mais próximos. Ou seja: quanto mais longe Marcelle olha, mais ela volta no tempo. O céu é a máquina do tempo. Quanto à câmera DES, sua função é justamente fotografar centenas de milhares de aglomerados, de todas as épocas, para permitir esse cálculo. Alguns estão absurdamente distantes de nós, e é isso que torna necessária a resolução de 570 megapixels.
Agora, a cereja no bolo: lembra a colisão de estrelas de nêutrons lá do início do texto? Pois é: ela serve para confirmar se a taxa de expansão do Universo calculada pelo método dos aglomerados está certa. Para explicar, vamos começar com um arco-íris: o vermelho fica sempre embaixo, o violeta, sempre em cima. Esse fenômeno acontece porque as ondas eletromagnéticas do vermelho são mais compridas que as do roxo, e as cores do arco-íris são organizadas por comprimento.
Quando o Universo se expande, as ondas de luz também esticam. E quanto mais esticam, mais se desviam para o vermelho. Aí é só aplicar a mesma lógica de antes: se a luz emitida por uma colisão de estrelas de nêutrons a 2 bilhões de anos-luz daqui se desvia excessivamente para o vermelho em relação à de uma que tenha rolado a 1 bilhão de anos-luz da Terra, é porque a expansão do Universo está fazendo a luz da segunda colisão se afastar de nós mais rápido que a da primeira.
Quando comparamos os resultados obtidos com aglomerados de galáxias e colisões de estrelas de nêutrons (entre outros métodos, que envolvem, por exemplo, explosões estelares chamadas supernovas), acontece uma surpresa: eles não batem. “Há uma discrepância, que aumenta quanto mais precisas ficam as medidas”, diz Marcelle. “Está cada vez mais complicado.” Há sempre a possibilidade de que os cientistas estejam ignorando alguma variável sem perceber. Mas também há a possibilidade de que as leis da física que conhecemos tenham chegado a um limite. Que as equações da Relatividade Geral, que explicam a expansão do cosmos, simplesmente não funcionem quando as distâncias envolvidas são enormes.
Algo parecido já aconteceu antes, inclusive: na década de 1920, descobriu-se que a Relatividade Geral não funciona a distâncias extremamente curtas – para elas, existe a mecânica quântica, toda uma nova física, que permite, por exemplo, que uma coisa ocupe vários lugares ao mesmo tempo.
Se descobrirmos que uma outra física se esconde não só no domínio das coisas minúsculas, mas também no das muito grandes, Marcelle estará na vanguarda dessa nova explicação. E a comunidade científica já percebeu: em fevereiro deste ano, a fundação Alfred P. Sloan lhe concedeu uma bolsa de US$ 70 mil. A Bolsa Sloan, que começou a ser distribuída em 1955, é um reconhecimento cobiçado: 47 dos cientistas que a receberam no começo da carreira ganharam prêmios Nobel depois. Algo nos diz que eles sabem farejar um talento.
FONTE: REVISTA SUPER INTERESSANTE
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