Ilustração de uma molécula de DNA acompanhada por seus pares de base e tendo ao fundo células: vida percorreu um longo caminho até chegar à sua complexidade atual - Latinstock
Pesquisadores propõem mecanismo sob o qual moléculas orgânicas simples usam outras como base para se juntarem em cadeias maiores e se replicarem
Uma das características fundamentais da vida como conhecemos é sua capacidade de se reproduzir. Hoje, em todos organismos da Terra - da maior das baleias às menores das bactérias, passando pelos próprios seres humanos -, isso é mediado por moléculas complexas como o DNA e o RNA, que dependem da ação coordenada de um verdadeiro exército de enzimas e outros compostos para se replicarem, num processo considerado sofisticado demais para que a vida em nosso planeta tenha surgido desta forma. Assim, muitos cientistas acreditam que a vida emergiu na Terra de uma maneira bem mais simples há cerca de 4 bilhões de anos, mas a falta de registros fósseis desta época torna muito difícil saber como.
Agora, porém, um novo modelo publicado por pesquisadores do Laboratório Nacional de Brookhaven, nos EUA, no periódico científico “Journal of Chemical Physics” pode explicar o mecanismo por trás de como a vida surgiu em nosso planeta. Então, pequenas moléculas orgânicas conhecidas como monômeros - como as adenina, thimina, guanina e citosina (A, T, G e C), os pares de base do DNA - se juntavam em cadeias maiores chamadas polímeros nas quentes “sopas” de material primordial que cobriam a Terra apenas para se desfazerem depois, num processo que se repetia indefinidamente.
Eventualmente, no entanto, alguns destes polímeros desenvolveram a capacidade de se copiarem. Com o tempo, a competição entre estas moléculas fez com que as mais eficientes em se copiarem se tornassem mais abundantes, passando esta característica adiante de geração em geração. Este cenário, porém, ainda não explica como os estes polímeros primordiais ganharam a capacidade de se reproduzirem, e é aí que entra o novo modelo proposto pelos pesquisadores de Brookhaven.
- Tentamos preencher esta lacuna na compreensão de como sistemas físicos simples se transformam em algo que pode se comportar como a vida e transmitir informações – conta Alexei Tkachenko, pesquisador da instituição americana e um dos autores do modelo.
Dividido em fases de “dia”, em que os monômeros flutuam livremente, e “noite”, em que eles se juntam em polímeros maiores, este ciclo seria desencadeado por fatores ambientais como mudanças na temperatura, salinidade ou acidez da água, que desequilibrariam o sistema. De acordo com o modelo, porém, durante a fase da “noite” muitos dos monômeros, e depois polímeros menores, se ligariam a alguns polímeros maiores complementares (como a adenina só se liga à timina e a guanina à citosina em nosso DNA) sobreviventes, mantendo-os próximos o bastante para que se juntassem mais facilmente na próxima fase, criando novos e ainda maiores polímeros cada vez mais estáveis, num mecanismo que os pesquisadores batizaram de “ligação assistida por modelação”. Com o tempo, estes novos polímeros se tornaram dominantes, dando início à emergência dos processos catalíticos autossustentados que marcam o comportamento das atuais moléculas da vida, o DNA e o RNA.
- Suponhamos que não tivéssemos nenhum polímero e começássemos apenas com monômeros em um tubo de ensaio. Iria esta mistura alguma vez encontrar uma maneira de formar os polímeros? - diz Tkachenko. - É resposta é um notável sim! Pode-se ver isso como o problema da galinha e do ovo, isto é, que para produzir polímeros é preciso já ter polímeros para servirem como um modelo da sua formação, mas o que acontece é que isto não é realmente necessário.
Segundo os pesquisadores, embora os polímeros possam se juntar sem a ajuda da modelação, o processo seria mais ao acaso e as cadeias formadas em uma geração não seriam necessariamente replicadas na seguinte. Com a modelação, porém, a informação seria preservada, já que os polímeros de uma geração ajudariam a construir os da próxima. Com isso, avaliam, seu modelo une o alongamento das cadeias poliméricas com sua replicação, fornecendo um primeiro potencial mecanismo para a hereditariedade. E embora a ideia da ligação assistida por modelação tenha sido proposta pela primeira vez nos anos 1980, ela foi apresentada de maneira qualitativa, e não quantitativa como no novo modelo.
- O que temos agora é um modelo real que pode ser executado em um computador – destaca Tkachenko. - É uma peça sólida de ciência em que se pode adicionar outros fatores e estudar os efeitos da memória e da hereditariedade.
Este novo modelo para o surgimento da vida, no entanto, tem limitações. Nele, a passagem de um mundo de monômeros para um de polímeros é abrupta e também “histérica”, isto é, é necessário um certo conjunto de condições para que este salto aconteça, embora uma vez que isso ocorra estas condições deixem de ser necessárias para que o sistema siga em frente e os polímeros continuem a se replicarem.
Outra falha do modelo que os pesquisadores esperam abordar em estudos futuros é que ele presume que todas as sequências poliméricas têm chances iguais de se formarem. A transmissão de informação, e por consequência a hereditariedade, requer uma certa variação na frequência das sequências de moléculas para que elas sirvam de código para, por exemplo, a produção de proteínas determinadas, cada uma com sua função. Assim, o próximo passo seria desenhar um cenário em que algumas sequências são mais comuns que outras, fazendo com que o sistema seja capaz de transmitir informações “relevantes” para a vida.
- Se as condições forem certas, temos o que chamamos de transição de primeira ordem, onde saímos desta “sopa” de monômeros completamente dispersos para um nova solução em que estas cadeias mais longas começam a aparecer - conta Tkachenko. - E agora temos um mecanismo para a a emergência destes polímeros que potencialmente podem carregar informações e transmiti-las. Uma vez que esta barreira é superada, esperamos que os monômeros se tornem capazes de produzir polímeros, saindo de uma “sopa” primordial para um “suflê” primordial.
O novo modelo também se encaixa bem na tese do chamado “mundo RNA”, a mais aceita atualmente para explicar os primórdios da vida na Terra. De acordo com esta hipótese, os primeiros organismos em nosso planeta usavam moléculas RNA para se reproduzirem até o desenvolvimento do DNA, mais estável mas também mais complexo, como modo de transmissão hereditária. Por outro lado, a simplicidade do modelo permite que ele seja usado para testar outras hipóteses de surgimento da vida que dependam da emergência de um sistema autocatalítico simples.
- Este modelo, por sua própria natureza, é muito geral – admite Sergei Maslov, outro de seus autores. - Não estamos tentando abordar questões como de onde veio esta sopa primordial de monômeros nem outras moléculas específicas envolvidas nele. Mas o modelo mostra um caminho físico plausível dos monômeros para os polímeros auto-replicantes, nos levando um pouco mais perto de entender as origens da vida.
FONTE: O GLOBO
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